FILME 07:
Cães de aluguel (Quentin Tarantino, 1992, 1h 39m)
MÓDULO: Representações
da violência no cinema
DATA DA
EXIBIÇÃO: 12/09/2018
HORÁRIO:
16:30 h
SALA: Laboratório Multimídia (Bloco F - UEMS - UUCG)
A
IMAGEM-VIOLÊNCIA EM CÃES DE ALUGUEL: CHOQUE OU ESPETÁCULO?
O filme Cães de aluguel (Reservoir dogs, 1992) marcou a estreia de Quentin Tarantino na direção de longas-metragens, apresentando ao grande público seu estilo marcante, especialmente o modo próprio de representar cinematograficamente a violência. Assim, escolhemos este filme importante de Tarantino para iniciar o módulo “Representações da violência no cinema”, pois ele fomenta uma discussão produtiva a respeito das implicações políticas e estéticas da imagem-violência, tendo exercido grande influência sobre o cinema contemporâneo (pós-moderno). Apesar de ter surgido na cena independente norte-americana, o primeiro filme de Tarantino daria a projeção ao estilo do diretor, que seria consagrado dois anos depois com Pulp Fiction: tempo de violência (1994).
Cães de
aluguel traz a história de seis homens que planejam assaltar uma joalheria. Em
uma ação coordenada por um chefão do crime, os assaltantes agem anonimamente,
utilizando codinomes a fim de um não conhecer a identidade do outro. Os seis
bandidos valem-se de nomes de cores, Mr. White (Harvey Keitel), Mr. Orange (Tim
Roth), Mr. Brown (Tarantino), Mr. Blonde (Michael Madsen), Mr. Pink (Steve
Buscemi), Mr. Blue (Edward Bunker). Durante o assalto, há um confronto com
policiais, ocasionando a fuga de Mr. White e Mr. Orange, que fora baleado na
barriga. Após os bandidos sobreviventes se reencontrarem em um galpão, começam
a fazer um jogo de acusações, pois desconfiam que um deles possa ter traído o
grupo, avisando os policiais do roubo.
Frustrando
expectativas mais óbvias, a trama não mostra o assalto, detendo-se em cenas que
o precedem, para em seguida registrar a fuga dos bandidos até o galpão onde
combinaram de se encontrar após o roubo. Mais do que isso, cabe observar no
cinema de Tarantino certa consciência hitchcockiana ao contornar o mote
dramático e concentrar-se em digressões trazidas pelos diálogos e pela
concatenação evocativa no encadeamento das cenas (lembremos da cena inicial do
planejamento do assalto na lanchonete, no qual os bandidos discutem, por vários
minutos, se é correto ou não dar gorjeta à garçonete).
Em geral,
rompe-se a linearidade narrativa e, por meio das digressões das personagens, a
história avança e recua, propondo um jogo instigante ao espectador: as cenas
violentas produzem o velho efeito naturalista hollywoodiano, ao mesmo tempo em
que os exageros dramáticos (o excesso de sangue e de piadas!) e os cortes
temporais vão revelando, aos olhos do espectador, o fato de que se está diante
de um discurso jocoso e anedótico sobreposto ao que se encena. Ou seja, o
espectador é atraído pelo conteúdo, mas é sempre lembrado que está a ver um
filme. Mais do que isso: está vendo um filme que lhe tensiona o olhar na medida
em que o realismo mais cru assume um tom burlesco, convertendo o espectador em
carrasco e vítima da encenação em que ele próprio se enreda. Isso ocorre, por
exemplo, quando descobrimos que Mr. Orange (Tim Roth) é na verdade um policial
infiltrado no bando. Há um flashback no qual acompanhamos o seu treino como
ator, buscando aprender a fala “marginal” e a contar piadas e histórias
verossímeis no mundo do crime. Contudo, não apenas vemos o processo de
aprendizado do policial-ator. Observamos que o “ator” aprende que contar uma
história é, antes de tudo, entreter e enganar. Assim, quando ele se infiltra no
bando, conta a história fantasiosa do dia em que teria sido acuado por
policiais e um cão farejador em um banheiro público. Apesar de estar carregando
drogas, Orange teria demonstrado confiança o suficiente para se impor na
situação, afrontando os policiais ao ligar o barulhento jato de ar para secar
as mãos. Nessa anedota, o filme produz um emolduramento, pois vemos ao mesmo
tempo o policial-ator contando e vivendo a história, fundindo os cenários do
enunciado e da enunciação. Há, como se vê, certo efeito de distanciamento que
visa romper com a ilusão diegética, impedindo a imersão transparente da representação
naturalista. No fim, é como se restasse algo de épico e burlesco nas vozes das
personagens, na medida em que cada história que se conta ressalta certa
performance que expressa uma ação anedótica, eivada de gestos caricaturais.
Certamente não estamos falando aqui do compromisso político de Brecht, mas o distanciamento
pode ser destacado como um elemento narrativo que visa romper com o pacto mais
ingênuo da representação realista, especialmente em torno da imagem-violência.
Todavia,
é certo que o cinema de Quentin Tarantino contribuiu para a sofisticação do
espetáculo da representação violenta nas telas. E sua conversão em espetáculo
significa, antes de tudo, o reconhecimento de que a própria violência
converteu-se em mercadoria, reificou-se como imagem atrativa ao olhar, gerando
um comércio de afetos e reações que lhe acompanham. No início dos anos 1990,
popularizou-se um tipo de jornalismo policial que buscava justamente a
imagem-violência como objeto a ser consumido pela massa, capaz de despertar
repulsa, raiva, curiosidade, medo e, por que não, certo prazer. O voyeurismo da
audiência televisiva, ansioso por consumir a imagem-violência como índice de
uma vida urbana atomizada e assolada pelo crime, trazia uma correlação sinistra
entre o medo e a curiosidade por ver a representação da violência como índice
de uma realidade cada vez menos compreensível. Os filmes de ação do período
acompanharam esse fenômeno social.
Contudo,
é certo que o cinema norte-americano, desde seu nascimento, já se valia da violência
como leitmotiv, especialmente em torno do tema da vendeta (vingança), no qual o
herói, após sofrer a violência, vivencia uma jornada na qual ele exercerá a
violência contra seus inimigos, produzindo um efeito catártico bem afeito a um
público para o qual a ideologia belicista tinha/tem um apelo evidente. Os westerns
foram obviamente a primeira expressão disso, seguidos depois pelos filmes de gangsters.
Tal fato ressalta, por exemplo, a influência de Sergio Leone, Sam Peckinpah e
Brian de Palma sobre a obra de Tarantino.
Por fim,
gostaria apenas de ressaltar uma questão de ordem estética e política que o
cinema de Quentin Tarantino suscita: qual o impacto de seus filmes em uma
sociedade em que o espetáculo da violência assumiu proporções assustadoras? Por
extensão: o cinema de Tarantino, ao estilizar a imagem-violência (recursos
inusitados de câmera, coreografias de luta, cenas de tortura com trilha de
música pop, etc.), produziria ainda algum estranhamento estético em um público
que aprendeu a consumir a violência de forma banalizada?
Para a
antropóloga social Rose Satiko Hikiji, em sua dissertação Imagem-violência:
Mímesis e reflexividade em alguns filmes recentes (1998), o cinema de Tarantino
cumpriria um papel político importante: oportunizar-nos o riso daquilo que
tememos. Diz a autora:
Na
realidade cotidiana são poucos os momentos em que uma agressão física é
admissível, e ainda menos numerosos aqueles em que ela seria risível —
excetuadas algumas situações de sadismo individual ou coletivo69. Mas, nos
filmes apresentados, rimos da mutilação de uma orelha, da explosão de um
cérebro e da trituração de uma perna. Estamos, também no plano da linguagem,
rindo do que tememos. (p. 89)
Se o medo
ainda é o afeto político que mais é acionado pelas ideologias totalitárias e
fascistoides, certamente a representação crua e cômica da violência abre a
possibilidade de se rir daquilo que se teme, desmistificando o discurso
autoritário que insiste em querer propor a severidade da ordem estrita por
sobre a violência maior do caos social. Resta saber em que medida ainda reside
na obra de Tarantino certa mirada irônica que produz um riso nervoso no
espectador, capaz de denunciar sua própria insensibilidade quando se extasia
frente à imagem-violência. Dada a repetição do espetáculo (e de certos
esquematismos em filmes subsequentes do diretor como Kill Bill, Bastardos e
inglórios, Os oito odiados, entre outros), é de se pensar que talvez esta
ironia tenha se dissolvido no pastiche da fórmula reificada pelo espetáculo da
indústria cultural. Hoje, ao que tudo indica, ver uma orelha sendo cortada (o
que a câmera de Tarantino se recusou a mostrar em 1992) não chega a estragar o
sabor da pipoca e do refrigerante...
Volmir Cardoso Pereira
Recomendamos
a leitura da dissertação citada, na qual consta uma bela análise do filme Cães
de aluguel e uma apresentação do conceito "imagem-violência". Segue o
link abaixo:
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