terça-feira, 11 de setembro de 2018

Filme 07: A imagem-violência em Cães de Aluguel: choque ou espetáculo?


FILME 07: Cães de aluguel (Quentin Tarantino, 1992, 1h 39m)

MÓDULO: Representações da violência no cinema

DATA DA EXIBIÇÃO: 12/09/2018

HORÁRIO: 16:30 h

SALA: Laboratório Multimídia (Bloco F - UEMS - UUCG)


 A IMAGEM-VIOLÊNCIA EM CÃES DE ALUGUEL: CHOQUE OU ESPETÁCULO?



O filme Cães de aluguel (Reservoir dogs, 1992) marcou a estreia de Quentin Tarantino na direção de longas-metragens, apresentando ao grande público seu estilo marcante, especialmente o modo próprio de representar cinematograficamente a violência. Assim, escolhemos este filme importante de Tarantino para iniciar o módulo “Representações da violência no cinema”, pois ele fomenta uma discussão produtiva a respeito das implicações políticas e estéticas da imagem-violência, tendo exercido grande influência sobre o cinema contemporâneo (pós-moderno). Apesar de ter surgido na cena independente norte-americana, o primeiro filme de Tarantino daria a projeção ao estilo do diretor, que seria consagrado dois anos depois com Pulp Fiction: tempo de violência (1994).
Cães de aluguel traz a história de seis homens que planejam assaltar uma joalheria. Em uma ação coordenada por um chefão do crime, os assaltantes agem anonimamente, utilizando codinomes a fim de um não conhecer a identidade do outro. Os seis bandidos valem-se de nomes de cores, Mr. White (Harvey Keitel), Mr. Orange (Tim Roth), Mr. Brown (Tarantino), Mr. Blonde (Michael Madsen), Mr. Pink (Steve Buscemi), Mr. Blue (Edward Bunker). Durante o assalto, há um confronto com policiais, ocasionando a fuga de Mr. White e Mr. Orange, que fora baleado na barriga. Após os bandidos sobreviventes se reencontrarem em um galpão, começam a fazer um jogo de acusações, pois desconfiam que um deles possa ter traído o grupo, avisando os policiais do roubo.
Frustrando expectativas mais óbvias, a trama não mostra o assalto, detendo-se em cenas que o precedem, para em seguida registrar a fuga dos bandidos até o galpão onde combinaram de se encontrar após o roubo. Mais do que isso, cabe observar no cinema de Tarantino certa consciência hitchcockiana ao contornar o mote dramático e concentrar-se em digressões trazidas pelos diálogos e pela concatenação evocativa no encadeamento das cenas (lembremos da cena inicial do planejamento do assalto na lanchonete, no qual os bandidos discutem, por vários minutos, se é correto ou não dar gorjeta à garçonete).
Em geral, rompe-se a linearidade narrativa e, por meio das digressões das personagens, a história avança e recua, propondo um jogo instigante ao espectador: as cenas violentas produzem o velho efeito naturalista hollywoodiano, ao mesmo tempo em que os exageros dramáticos (o excesso de sangue e de piadas!) e os cortes temporais vão revelando, aos olhos do espectador, o fato de que se está diante de um discurso jocoso e anedótico sobreposto ao que se encena. Ou seja, o espectador é atraído pelo conteúdo, mas é sempre lembrado que está a ver um filme. Mais do que isso: está vendo um filme que lhe tensiona o olhar na medida em que o realismo mais cru assume um tom burlesco, convertendo o espectador em carrasco e vítima da encenação em que ele próprio se enreda. Isso ocorre, por exemplo, quando descobrimos que Mr. Orange (Tim Roth) é na verdade um policial infiltrado no bando. Há um flashback no qual acompanhamos o seu treino como ator, buscando aprender a fala “marginal” e a contar piadas e histórias verossímeis no mundo do crime. Contudo, não apenas vemos o processo de aprendizado do policial-ator. Observamos que o “ator” aprende que contar uma história é, antes de tudo, entreter e enganar. Assim, quando ele se infiltra no bando, conta a história fantasiosa do dia em que teria sido acuado por policiais e um cão farejador em um banheiro público. Apesar de estar carregando drogas, Orange teria demonstrado confiança o suficiente para se impor na situação, afrontando os policiais ao ligar o barulhento jato de ar para secar as mãos. Nessa anedota, o filme produz um emolduramento, pois vemos ao mesmo tempo o policial-ator contando e vivendo a história, fundindo os cenários do enunciado e da enunciação. Há, como se vê, certo efeito de distanciamento que visa romper com a ilusão diegética, impedindo a imersão transparente da representação naturalista. No fim, é como se restasse algo de épico e burlesco nas vozes das personagens, na medida em que cada história que se conta ressalta certa performance que expressa uma ação anedótica, eivada de gestos caricaturais. Certamente não estamos falando aqui do compromisso político de Brecht, mas o distanciamento pode ser destacado como um elemento narrativo que visa romper com o pacto mais ingênuo da representação realista, especialmente em torno da imagem-violência.
Todavia, é certo que o cinema de Quentin Tarantino contribuiu para a sofisticação do espetáculo da representação violenta nas telas. E sua conversão em espetáculo significa, antes de tudo, o reconhecimento de que a própria violência converteu-se em mercadoria, reificou-se como imagem atrativa ao olhar, gerando um comércio de afetos e reações que lhe acompanham. No início dos anos 1990, popularizou-se um tipo de jornalismo policial que buscava justamente a imagem-violência como objeto a ser consumido pela massa, capaz de despertar repulsa, raiva, curiosidade, medo e, por que não, certo prazer. O voyeurismo da audiência televisiva, ansioso por consumir a imagem-violência como índice de uma vida urbana atomizada e assolada pelo crime, trazia uma correlação sinistra entre o medo e a curiosidade por ver a representação da violência como índice de uma realidade cada vez menos compreensível. Os filmes de ação do período acompanharam esse fenômeno social.
Contudo, é certo que o cinema norte-americano, desde seu nascimento, já se valia da violência como leitmotiv, especialmente em torno do tema da vendeta (vingança), no qual o herói, após sofrer a violência, vivencia uma jornada na qual ele exercerá a violência contra seus inimigos, produzindo um efeito catártico bem afeito a um público para o qual a ideologia belicista tinha/tem um apelo evidente. Os westerns foram obviamente a primeira expressão disso, seguidos depois pelos filmes de gangsters. Tal fato ressalta, por exemplo, a influência de Sergio Leone, Sam Peckinpah e Brian de Palma sobre a obra de Tarantino.
Por fim, gostaria apenas de ressaltar uma questão de ordem estética e política que o cinema de Quentin Tarantino suscita: qual o impacto de seus filmes em uma sociedade em que o espetáculo da violência assumiu proporções assustadoras? Por extensão: o cinema de Tarantino, ao estilizar a imagem-violência (recursos inusitados de câmera, coreografias de luta, cenas de tortura com trilha de música pop, etc.), produziria ainda algum estranhamento estético em um público que aprendeu a consumir a violência de forma banalizada?
Para a antropóloga social Rose Satiko Hikiji, em sua dissertação Imagem-violência: Mímesis e reflexividade em alguns filmes recentes (1998), o cinema de Tarantino cumpriria um papel político importante: oportunizar-nos o riso daquilo que tememos. Diz a autora:
Na realidade cotidiana são poucos os momentos em que uma agressão física é admissível, e ainda menos numerosos aqueles em que ela seria risível — excetuadas algumas situações de sadismo individual ou coletivo69. Mas, nos filmes apresentados, rimos da mutilação de uma orelha, da explosão de um cérebro e da trituração de uma perna. Estamos, também no plano da linguagem, rindo do que tememos. (p. 89)

Se o medo ainda é o afeto político que mais é acionado pelas ideologias totalitárias e fascistoides, certamente a representação crua e cômica da violência abre a possibilidade de se rir daquilo que se teme, desmistificando o discurso autoritário que insiste em querer propor a severidade da ordem estrita por sobre a violência maior do caos social. Resta saber em que medida ainda reside na obra de Tarantino certa mirada irônica que produz um riso nervoso no espectador, capaz de denunciar sua própria insensibilidade quando se extasia frente à imagem-violência. Dada a repetição do espetáculo (e de certos esquematismos em filmes subsequentes do diretor como Kill Bill, Bastardos e inglórios, Os oito odiados, entre outros), é de se pensar que talvez esta ironia tenha se dissolvido no pastiche da fórmula reificada pelo espetáculo da indústria cultural. Hoje, ao que tudo indica, ver uma orelha sendo cortada (o que a câmera de Tarantino se recusou a mostrar em 1992) não chega a estragar o sabor da pipoca e do refrigerante...

Volmir Cardoso Pereira



Recomendamos a leitura da dissertação citada, na qual consta uma bela análise do filme Cães de aluguel e uma apresentação do conceito "imagem-violência". Segue o link abaixo:

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