sábado, 28 de abril de 2018

Filme 03: CRÍTICA: O menino e o mundo (Alê Abreu, 2013)


FILME 03: O menino e o mundo (Alê Abreu, 2013, 1h 35m)
MÓDULO: O contemporâneo em questão
DATA DA EXIBIÇÃO: 09/05/2018
HORÁRIO: 16:30 h
SALA: Laboratório Multimídia (Bloco F - UEMS - UUCG)


A subversão da infância em O menino e o mundo

Premiado em Festivais como o de Havana, o FICA (Festival Internacional de Cinema Ambiental), Shangai TV Festival, Festival de Annecy e mostras como a de cinema de São Paulo e de Lisboa, além da indicação ao Oscar 2016, a produção brasileira do diretor Alê Abreu, de 2013, figura como uma obra de extrema qualidade no cenário dos longas de animação. Alê Abreu também nos brinda com outras iniciativas como Garoto Cósmico, de 2007, Luz, Anima, Ação (2014), Viajantes do Bosque Encantado (2016), Imortais (2017) e uma série intitulada Vivi Viravento, também de 2017.

Com 80 minutos de enigmas apresentados numa estética carregada de metáforas e simbolismos, a obra em questão tem um roteiro que circunda a história de um menino que sofrendo a ausência do pai, parte para conhecer o mundo. Nele, vislumbra-se uma beleza natural pelos olhos da criança, mas também a exploração, o cinza, preto e ocre das grandes metrópoles, com suas fábricas e destruição de sonhos e utopias. A tela em branco vai dando lugar a colagens, guaches, riscos simples de giz de cera e lápis de cor até alcançar a linguagem bastante contemporânea da propaganda e de anúncios, numa crítica sem rodeios à sociedade do consumo e da destruição desenfreada do meio ambiente, e à inversão de papéis, no trabalho infantil, realidade ainda presente nos dias atuais.
A conjugação de três tempos (passado – presente - futuro) numa cena só (o que acontece por vezes na película) ganha aspectos complexos, da ordem do sofrimento, que subvertem a ideia simplória da infância feliz, que abarca em si as angústias, o medo, o desamparo, e ao mesmo tempo apontam para a brincadeira, a gargalhada, a imaginação e a criatividade. Uma mise-en-scène dramática e bela, rica em referências de obras plásticas de artistas como Paul Klee, Kandinsky e Miró, e porque não dizer, de Edvard Munch, transitando entre o colorido, o inefável e o horror, a desolação de “O grito”.
Proporciona-se ao espectador atento uma experiência estética aos moldes daquela referenciada na Teoria Estética de Adorno, em que mergulhamos numa vivência intensa de autonomia, mimeses e resistência: uma busca de recriação, interpretação e crítica de um contexto banhado por questões que brincam com o universal e o particular, com o sujeito e o objeto, numa dialética negativa do não-idêntico que evita a cristalização nos conceitos tão demandados na pobreza do entretenimento e das mercadorias e produtos oferecidos pela indústria cultural, ou ainda tão propagados pela racionalidade instrumental.

Imbrica-se o som e a imagem, e com poucos diálogos (todas as falas são em língua portuguesa invertida) vamos descobrindo na história de Ominem (a palavra menino de trás para frente), a história de qualquer criança, o universal da infância e a subjetividade de cada um de nós, perdidos no mundo adulto que muitas vezes tenta apagar o colorido, a ficção e a narrativa. A trilha sonora, composta por Gustavo Kurlat e Ruben Feffer ainda conta com a participação de Naná Vasconcelos, Emicida, do Grupo Experimental de Música (GEM) e do grupo Barbatuques. Somos embalados pela diversidade da Cultura Popular, pela festa de cores e também pelas dores de ser criança e de estar em mundo repleto de contradições, equívocos, mas também sabores.

Keyla Andrea Santiago Oliveira
(Professora do curso de Artes Cênicas e Dança - UEMS - UUCG)

BIBLIOGRAFIA SUGERIDA

ADORNO, Theodor W. ADORNO, T. W. Teoria estética. Traduzido por Artur Mourão 2ª ed. Lisboa: Edições 70, título original de 1970.

OLIVEIRA, K. A. S. Possibilidades da experiência estética na educação da infância: uma proposta com leitura de imagens. Curitiba: Appris, 2014.

ROURE, Glacy Queiros de. Programa Intervalo de aula - Infância na retina – O menino e o mundo. Disponível em  https://www.youtube.com/watch?v=fn81LiFBwlg.



domingo, 15 de abril de 2018

Filme 02: CRÍTICA: Um alguém apaixonado (Abbas Kiarostami, 2012)


FILME 02: Um alguém apaixonado (Abbas Kiarostami, 2012, 1h 45m)
MÓDULO: O contemporâneo em questão
DATA DA EXIBIÇÃO: 18/04/2018
HORÁRIO: 16:30 h
SALA: Laboratório Multimídia (Bloco F - UEMS - UUCG)

Solidão, afeto e violência em Um alguém apaixonado, de Abbas Kiarostami

     O diretor iraniano Abbas Kiarostami, falecido em 2016, deixou-nos como legado uma das obras mais instigantes e originais do cinema mundial, desde os anos 1970. Ganhou prêmios importantes como a Palma de Ouro de Cannes, pelo filme Gosto de cereja (1997) e o Leão de Ouro do Festival de Veneza em 1999, por O vento nos levará (1999). Pode-se dizer que nos filmes de Kiarostami há um distanciamento dos esquemas melodramáticos do cinema hollywoodiano e até mesmo do conceitualismo europeu. Em sua obra, observa-se a fusão de um cinema metaficcional com a capacidade de comunicar, em profundidade, alguma experiência significativa no mundo. Passando pela representação problemática dos afetos na contemporaneidade, o choque entre tradição e modernidade (Onde fica a casa do meu amigo, 1987; O vento nos levará, 1999), entre simulacro e realidade (Cópia fiel, 2010), a busca pelo sentido da vida (Gosto de cereja), sua obra é um painel rico e variado das relações humanas estabelecidas na pós-modernidade, não se prendendo a um contexto nacional específico, mas marcando um olhar oriental que se define em contraponto à percepção reificada do Ocidente.
     Em Um alguém apaixonado (Like someone in love, 2012), último filme de Kiarostami, rodado no Japão, temos um retrato agudo de nossa época, marcada pelo fugacidade das relações interpessoais e pela negação da tradição e dos valores que não possam ser computados como mercadoria e lucro. O filme nos apresenta a personagem Akiko (Rin Takanashi), uma jovem estudante que atua como prostituta, e que, em um de seus programas, conhece o velho professor de sociologia Wanabe Takashi (Tadashi Okuno). Ambos, após um primeiro encontro marcado pelo diálogo espontâneo, em que Akiko identifica-se com as fotos da neta e da falecida esposa do professor Takashi, iniciam uma relação de amizade que será o núcleo dramático da narrativa. O “programa”, nesse sentido, apesar de ser uma atividade mercantil objetivada, desvela-se numa possibilidade rara de comunicação mais íntima, no qual o sexo é apenas um detalhe que pode ser descartado. É de nosso conhecimento que, no mundo ocidental, os idosos têm sofrido com a solidão nas grandes cidades, sendo esquecidos pelos familiares, como se estivessem em um limbo social, em que aqueles que já não são produtivos e não se inserem em padrões de consumo, não possuem/merecem reconhecimento. No capitalismo tardio, a cultura transformou-se definitivamente em mercadoria, incluindo nossos afetos e nossa subjetividade. Aquilo que não gera lucro ou que não pode ser compreendido como “novidade”, é sumariamente descartado. Nesse sentido, o abandono dos idosos é sentido como uma das marcas mais perversas da vida social contemporânea.
     Se o Oriente ainda podia ser visto como um locus da tradição, em que a força milenar de suas culturas residia justamente nesta transmissão de valores de uma geração para outra, no qual o idoso era reconhecido como figura de autoridade, certamente esse já não é mais o caso do Japão contemporâneo. No filme, a câmera percorre, junto com o olhar perdido de Akiko, as ruas de uma Tóquio em neon, repleta de letreiros e anúncios, mais uma metrópole globalizada. Enquanto Akiko contempla, pelo vidro do táxi, esse universo em que ela também acabou se tornando apenas mais um anúncio, ouvimos os recados da avó deixados em seu celular. A avó viera lhe visitar, mas ela sequer lhe respondeu aos recados deixados no celular. Akiko, mais do que por sua vontade, é impelida a não responder ao contato/chamado da voz ancestral da avó.
Desse modo, a amizade imprevista com o professor aposentado não caminha para a afirmação melodramática de um sentimento autêntico que pudesse suplantar a ordem reificada das coisas. Há aí uma dialética dos afetos que aponta para a seguinte perspectiva: quanto mais se afirma esta amizade, mais a tensão dramática cresce, apontando um fim trágico. A entrada em cena do noivo de Akiko, o ciumento e inseguro Noriaki (Ryo Kase), é a expressão mais evidente desta tensão: a princípio, ele busca afirmar seu relacionamento com Akiko pela tradição (submissão da mulher ao homem; castidade feminina; respeito à autoridade patriarcal). Como Akiko já não cabe mais neste roteiro tradicional (ela, estudante de sociologia), Noriaki (um jovem que desistiu dos estudos para trabalhar como mecânico) desempenhará o papel passional do enciumado, capaz de lançar mão da violência como resposta final.
     Por último, gostaria de dizer que, mais do que uma fábula contemporânea sobre a solidão e a negatividade dos afetos, Um alguém apaixonado é também um trabalho de construção/desconstrução do olhar. O próprio espectador, nesse sentido, é convidado a se demorar sobre a cena e sobre as expressões das personagens (primeiro-plano, close-ups). As cenas e os planos são longos. Contudo, mesmo com tanta minúcia no registro das expressões, há uma zona de sombra que persiste, impedindo a revelação das personagens, sobretudo de Akiko. Mas a principal figura de estranhamento no filme é o extra-campo: o filme começa com um espaço no qual a personagem principal não está visível. Akiko, no início, fala ao telefone com seu noivo ciumento, mas não a vemos. Vemos apenas a boate e as pessoas que a frequentam. Sua voz está dentro da cena, mas sua imagem está fora do quadro. A avó de Akiko é também um fantasma, uma voz que podemos ouvir por meio de recados deixados na caixa do celular, mas que não vemos. A última cena do filme expõe um estranhamento agudo: Akiko e Takashi são lançados para fora do enquadramento, como resultado de um ato final de violência que rompe a continuidade dramática.
     O cinema de Kiarostami, como se vê, não está preocupado em apenas contar uma história, mas se preocupa, antes, em fazer um questionamento radical da nossa própria percepção, do nosso modo de ver e sentir. Neste filme, expõe-se o ridículo de nossas expectativas melodramáticas em um mundo atomizado, cujos afetos provisórios não podem fazer frente ao processo mais amplo de reificação da vida, em que os valores sólidos se desmancham e a violência tende a se apresentar como última resposta.

Volmir Cardoso Pereira
(Professor do curso de Letras – UEMS/UUCG)


BIBLIOGRAFIA SUGERIDA (links para download dos textos)

Bauman apresenta um painel das relações afetivas na contemporaneidade, observando como a fragilidade dos laços afetivos, a falta de compromisso com o outro, e a busca por relações pautadas por afinidades provisórias ao invés de estruturas de parentesco, são sintomas de uma ordem social que impõe a precariedade como regra no mundo do trabalho e na fugacidade do consumo.

Em seu ensaio “envelhecer e morrer: alguns problemas sociológicos”, o sociólogo Norbert Elias faz uma interessante reflexão sobre a dificuldade das sociedades industriais avançadas em lidar com os idosos e com a morte. Elias mostra como a morte se tornou um tabu social para as novas gerações e como o envelhecimento passou a ser sinal de fracasso social e perda de vínculos afetivos.