quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Filme 08: Violência gratuita, de Michael Haneke. A culpa também é de quem assiste.

 
FILME 07: Violência gratuita, 1997, 1h 46m)


MÓDULO: Representações da violência no cinema


DATA DA EXIBIÇÃO: 12/09/2018


HORÁRIO: 16:30 h


SALA: Laboratório Multimídia (Bloco F - UEMS - UUCG)

O filme Violência gratuita (1997), dirigido pelo cineasta austríaco Michael Haneke, traz inquietantes reflexões sobre como nós, espectadores, estamos nos acostumando às representações da violência no cinema e na cultura audiovisual. Ao romper a ilusão da "quarta parede" em vários momentos do filme, o cineasta estabelece um jogo com o espectador, estimulando-o a se ver como um participante (quase um cúmplice) da violência representada.

Para pensar um pouco mais sobre esse filme, segue o comentário crítico feito pela professora Keyla Oliveira:

 
Violência Gratuita duas vezes, um sinal dos tempos?

Com duas versões, uma austríaca e outra norte-americana, o filme Violência Gratuita foi lançado pelo diretor Michael Haneke, também roteirista, nos anos de 1997 e 2007, respectivamente: uma simples comemoração de 10 anos ou seria um sinal dos tempos contemporâneos, recheados de episódios que sintonizam com a mensagem explícita do roteiro? Controvérsias à parte, uma opinião que parece se repetir em diferentes textos e artigos que se referem a esta obra é de que ela se vale de estratégias que arrebanham a cumplicidade do espectador na participação dos eventos que se sucedem na narrativa.
Haneke é conhecido por suas produções difíceis e um tanto indigestas, adjetivos que se justificam na sua intenção de criar películas cujos objetivos não pairam sobre a égide do entretenimento, mas almejam no mínimo fazer pensar sobre as contradições humanas, sua natureza complexa e suas relações imbricadas em impasses, ou episódios muitas vezes sombrios, mesmo aqueles gestados na vida cotidiana, acima de qualquer suspeita.
Para citar alguns exemplos, em A Fita Branca percebemos isso facilmente, já no início deparamo-nos com um clima “ pesado, lento, o ar de mistério, intolerância, ódio e terror rondam os fatos narrados, dando ao espectador uma sensação de angústia, horror e desesperança, à medida que se entende aos poucos que o envolvimento central nas tragédias [crimes] é das crianças” (AQUINO e OLIVEIRA, 2017). Em Amor, o dilema do marido em relação à esposa é sufocante, e a decisão polêmica na opção pela morte poderia facilmente ser questionada no senso comum das opiniões apressadas. Com A Professora de Piano, acessamos um lado doentio de uma personalidade que a princípio se mostra ilibada, correta, protegida das distorções de sentimentos, mas que alimenta perversões e uma relação bizarra e ambígua com a mãe controladora e um aluno do conservatório.
Em Violência Gratuita não poderia ser diferente, o título em inglês Funny Games já nos revela a ironia de uma história que orquestra tortura e morte de uma família que tenciona passar férias em sua casa de campo, e que acaba vítima de dois rapazes que se revezam em jogos macabros, que ao cabo, parecem ser psicopatas, jovens de classe média entediados de suas vidas de estudantes. Sem dúvida, o filme nos transporta, especialmente na sua primeira versão, para momentos de terror inimagináveis, mesclados com a habilidade do diretor de inserir, em sua estrutura, dispositivos que alertam para a estrutura da ficção, que gera uma visão crítica sobre o espetáculo da violência, e uma atuação brilhante dos atores envolvidos. Merece destaque a atriz Susanne Lothar, que interpreta Anna e se transforma física e psicologicamente na frente das câmeras, angariando inclusive sentimentos que oscilam entre a raiva e a decepção quando enfatizamos a personagem de Georg, seu marido na trama.
Segundo Oliveira e Ramari (2016),
O enredo, sobre o assassinato de três membros de uma família apresenta-se em um primeiro momento como um suspense comercial, com a predominância de imagens-movimento, a fim de entreter os espectadores com a impressão de realidade. No entanto, quando rupturas passam a ser realizadas por imagens-tempo, entre outros recursos, o cineasta induz o público a refletir sobre o consumo cotidiano de imagens de violência. A sequência do controle remoto é um exemplo desse último caso (OLIVEIRA e RAMARI, 2016, p. 253).

Ainda neste sentido, outra referência nos remete à especificidade do cinema de Haneke nessa proposição de saturar o “preceito-base do counter-cinematic, que é o de estimular uma reação em quem assiste” , ou seja, o cineasta aparece como expoente dessa modalidade que, por fim, ensaia uma crítica e busca desnudar a alienação presente no consumo de filmes marcados pelas imagens-movimento.
O ponto-chave que faz com que as duas versões de “Violência Gratuita” atendam aos preceitos do counter-cinematic é a maneira com que Haneke retrata a violência. Ele evita mostrar as cenas em que as vítimas são agredidas ou assassinadas. Quando a estória inclui um acontecimento desse tipo, a câmera desvia o olhar do espectador, que só sabe o que está acontecendo por meio dos sons. Essa estratégia do cineasta faz com que as películas se tornem insuportavelmente dolorosas para muitos espectadores, por uma única razão: ela não dá vazão à catarse. Existem relatos de pessoas que não conseguiram chegar até o minuto final do filme por causa disso (RAMARI, 2014, p. 06).

Como se vê, a questão ainda permanece, estrear duas versões de um mesmo roteiro, em línguas diferentes, parece ir além do simples objetivo da celebração e mais um chamamento necessário para tempos de violência simbólica e real que assola nossos dias, nada mais apropriado do que inseri-lo nas discussões do Cine Clube UEMS, que se encontra projetando filmes que instigam reflexão sobre As representações da Violência no cinema.

                                      Profª Drª Keyla Andrea Santiago Oliveira

AQUINO, Thaís Lobosque e OLIVEIRA, Keyla Andrea Santiago Oliveira. Notas sobre o filme A Fita Branca: o vínculo entre o sufocamento do saber sensível e a banalização da barbárie, Anais do Porto Alegre, 2017.
RAMARI, Thiago Henrique. A violência na berlinda: o counter-cinematic de Michael Haneke. Anais do Encontro Nacional de Pesquisa em Comunicação e Imagem – ENCOI, Londrina, 2014.
OLIVEIRA, Ana Paula e RAMARI, Thiago Henrique. O TEMPO E O PENSAMENTO: a anomalia anacrônica como elemento de propulsão para a consciência crítica no filme “Violência Gratuita”. Revista UFMG, Belo Horizonte, v. 23, n. 1 e 2, p. 248-269, jan./dez. 2016.
  




terça-feira, 11 de setembro de 2018

Filme 07: A imagem-violência em Cães de Aluguel: choque ou espetáculo?


FILME 07: Cães de aluguel (Quentin Tarantino, 1992, 1h 39m)

MÓDULO: Representações da violência no cinema

DATA DA EXIBIÇÃO: 12/09/2018

HORÁRIO: 16:30 h

SALA: Laboratório Multimídia (Bloco F - UEMS - UUCG)


 A IMAGEM-VIOLÊNCIA EM CÃES DE ALUGUEL: CHOQUE OU ESPETÁCULO?



O filme Cães de aluguel (Reservoir dogs, 1992) marcou a estreia de Quentin Tarantino na direção de longas-metragens, apresentando ao grande público seu estilo marcante, especialmente o modo próprio de representar cinematograficamente a violência. Assim, escolhemos este filme importante de Tarantino para iniciar o módulo “Representações da violência no cinema”, pois ele fomenta uma discussão produtiva a respeito das implicações políticas e estéticas da imagem-violência, tendo exercido grande influência sobre o cinema contemporâneo (pós-moderno). Apesar de ter surgido na cena independente norte-americana, o primeiro filme de Tarantino daria a projeção ao estilo do diretor, que seria consagrado dois anos depois com Pulp Fiction: tempo de violência (1994).
Cães de aluguel traz a história de seis homens que planejam assaltar uma joalheria. Em uma ação coordenada por um chefão do crime, os assaltantes agem anonimamente, utilizando codinomes a fim de um não conhecer a identidade do outro. Os seis bandidos valem-se de nomes de cores, Mr. White (Harvey Keitel), Mr. Orange (Tim Roth), Mr. Brown (Tarantino), Mr. Blonde (Michael Madsen), Mr. Pink (Steve Buscemi), Mr. Blue (Edward Bunker). Durante o assalto, há um confronto com policiais, ocasionando a fuga de Mr. White e Mr. Orange, que fora baleado na barriga. Após os bandidos sobreviventes se reencontrarem em um galpão, começam a fazer um jogo de acusações, pois desconfiam que um deles possa ter traído o grupo, avisando os policiais do roubo.
Frustrando expectativas mais óbvias, a trama não mostra o assalto, detendo-se em cenas que o precedem, para em seguida registrar a fuga dos bandidos até o galpão onde combinaram de se encontrar após o roubo. Mais do que isso, cabe observar no cinema de Tarantino certa consciência hitchcockiana ao contornar o mote dramático e concentrar-se em digressões trazidas pelos diálogos e pela concatenação evocativa no encadeamento das cenas (lembremos da cena inicial do planejamento do assalto na lanchonete, no qual os bandidos discutem, por vários minutos, se é correto ou não dar gorjeta à garçonete).
Em geral, rompe-se a linearidade narrativa e, por meio das digressões das personagens, a história avança e recua, propondo um jogo instigante ao espectador: as cenas violentas produzem o velho efeito naturalista hollywoodiano, ao mesmo tempo em que os exageros dramáticos (o excesso de sangue e de piadas!) e os cortes temporais vão revelando, aos olhos do espectador, o fato de que se está diante de um discurso jocoso e anedótico sobreposto ao que se encena. Ou seja, o espectador é atraído pelo conteúdo, mas é sempre lembrado que está a ver um filme. Mais do que isso: está vendo um filme que lhe tensiona o olhar na medida em que o realismo mais cru assume um tom burlesco, convertendo o espectador em carrasco e vítima da encenação em que ele próprio se enreda. Isso ocorre, por exemplo, quando descobrimos que Mr. Orange (Tim Roth) é na verdade um policial infiltrado no bando. Há um flashback no qual acompanhamos o seu treino como ator, buscando aprender a fala “marginal” e a contar piadas e histórias verossímeis no mundo do crime. Contudo, não apenas vemos o processo de aprendizado do policial-ator. Observamos que o “ator” aprende que contar uma história é, antes de tudo, entreter e enganar. Assim, quando ele se infiltra no bando, conta a história fantasiosa do dia em que teria sido acuado por policiais e um cão farejador em um banheiro público. Apesar de estar carregando drogas, Orange teria demonstrado confiança o suficiente para se impor na situação, afrontando os policiais ao ligar o barulhento jato de ar para secar as mãos. Nessa anedota, o filme produz um emolduramento, pois vemos ao mesmo tempo o policial-ator contando e vivendo a história, fundindo os cenários do enunciado e da enunciação. Há, como se vê, certo efeito de distanciamento que visa romper com a ilusão diegética, impedindo a imersão transparente da representação naturalista. No fim, é como se restasse algo de épico e burlesco nas vozes das personagens, na medida em que cada história que se conta ressalta certa performance que expressa uma ação anedótica, eivada de gestos caricaturais. Certamente não estamos falando aqui do compromisso político de Brecht, mas o distanciamento pode ser destacado como um elemento narrativo que visa romper com o pacto mais ingênuo da representação realista, especialmente em torno da imagem-violência.
Todavia, é certo que o cinema de Quentin Tarantino contribuiu para a sofisticação do espetáculo da representação violenta nas telas. E sua conversão em espetáculo significa, antes de tudo, o reconhecimento de que a própria violência converteu-se em mercadoria, reificou-se como imagem atrativa ao olhar, gerando um comércio de afetos e reações que lhe acompanham. No início dos anos 1990, popularizou-se um tipo de jornalismo policial que buscava justamente a imagem-violência como objeto a ser consumido pela massa, capaz de despertar repulsa, raiva, curiosidade, medo e, por que não, certo prazer. O voyeurismo da audiência televisiva, ansioso por consumir a imagem-violência como índice de uma vida urbana atomizada e assolada pelo crime, trazia uma correlação sinistra entre o medo e a curiosidade por ver a representação da violência como índice de uma realidade cada vez menos compreensível. Os filmes de ação do período acompanharam esse fenômeno social.
Contudo, é certo que o cinema norte-americano, desde seu nascimento, já se valia da violência como leitmotiv, especialmente em torno do tema da vendeta (vingança), no qual o herói, após sofrer a violência, vivencia uma jornada na qual ele exercerá a violência contra seus inimigos, produzindo um efeito catártico bem afeito a um público para o qual a ideologia belicista tinha/tem um apelo evidente. Os westerns foram obviamente a primeira expressão disso, seguidos depois pelos filmes de gangsters. Tal fato ressalta, por exemplo, a influência de Sergio Leone, Sam Peckinpah e Brian de Palma sobre a obra de Tarantino.
Por fim, gostaria apenas de ressaltar uma questão de ordem estética e política que o cinema de Quentin Tarantino suscita: qual o impacto de seus filmes em uma sociedade em que o espetáculo da violência assumiu proporções assustadoras? Por extensão: o cinema de Tarantino, ao estilizar a imagem-violência (recursos inusitados de câmera, coreografias de luta, cenas de tortura com trilha de música pop, etc.), produziria ainda algum estranhamento estético em um público que aprendeu a consumir a violência de forma banalizada?
Para a antropóloga social Rose Satiko Hikiji, em sua dissertação Imagem-violência: Mímesis e reflexividade em alguns filmes recentes (1998), o cinema de Tarantino cumpriria um papel político importante: oportunizar-nos o riso daquilo que tememos. Diz a autora:
Na realidade cotidiana são poucos os momentos em que uma agressão física é admissível, e ainda menos numerosos aqueles em que ela seria risível — excetuadas algumas situações de sadismo individual ou coletivo69. Mas, nos filmes apresentados, rimos da mutilação de uma orelha, da explosão de um cérebro e da trituração de uma perna. Estamos, também no plano da linguagem, rindo do que tememos. (p. 89)

Se o medo ainda é o afeto político que mais é acionado pelas ideologias totalitárias e fascistoides, certamente a representação crua e cômica da violência abre a possibilidade de se rir daquilo que se teme, desmistificando o discurso autoritário que insiste em querer propor a severidade da ordem estrita por sobre a violência maior do caos social. Resta saber em que medida ainda reside na obra de Tarantino certa mirada irônica que produz um riso nervoso no espectador, capaz de denunciar sua própria insensibilidade quando se extasia frente à imagem-violência. Dada a repetição do espetáculo (e de certos esquematismos em filmes subsequentes do diretor como Kill Bill, Bastardos e inglórios, Os oito odiados, entre outros), é de se pensar que talvez esta ironia tenha se dissolvido no pastiche da fórmula reificada pelo espetáculo da indústria cultural. Hoje, ao que tudo indica, ver uma orelha sendo cortada (o que a câmera de Tarantino se recusou a mostrar em 1992) não chega a estragar o sabor da pipoca e do refrigerante...

Volmir Cardoso Pereira



Recomendamos a leitura da dissertação citada, na qual consta uma bela análise do filme Cães de aluguel e uma apresentação do conceito "imagem-violência". Segue o link abaixo:

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Filme 06: Sensorialidade, fragmentação e arte em A grande beleza

FFILME 06: A Grande Beleza (Paolo Sorrentino, 2013, 2h 52m)
MÓDULO: O contemporâneo em questão
DATA DA EXIBIÇÃO: 10/08/2018
HORÁRIO: 15:30 h
SALA: Laboratório Multimídia (Bloco F - UEMS - UUCG)

Em busca de sentidos na produção artística contemporânea: fragmentos sobre o saber sensível no filme A Grande Beleza

Keyla Andrea Santiago e Thaís Lobosque Aquino






É sempre assim que termina, com a morte,

no entanto antes houve a vida,

escondida embaixo do blá, blá, blá.

É tudo sedimentado por baixo das câmeras

e do barulho: o silêncio e o sentimento, a emoção

e o medo. Os frágeis e inconstantes vislumbres de beleza...

                                                         Jep Gambardella


O estouro de um canhão ovacionado por um grupo de pessoas já no início da narrativa fílmica e a morte súbita de um turista que tenta captar nas lentes de sua câmera um pedaço que ainda pode haver restado da grandiosa Roma pré-anunciam o caos de uma cidade em plena decadência, que gera a nostalgia de uma beleza há muito escondida em seus monumentos, na música vocal e nas fontes um dia limpas. Mostra a crueza das relações humanas, ali desnudas de seus truques cotidianos, em um espetáculo que não cansa de estrear seus miseráveis dias em festas regadas a entorpecentes, entretenimento frívolo, uma busca incessante por algo que se perdeu: a grande beleza.

Consciente dessa perda está a personagem principal da trama, Jep Gambardella, um misto de tédio, tristeza, nostalgia, que assiste à ilusão de vida em que ele e seus amigos estão mergulhados, mas ainda busca uma réstia de luz em um país assombrado, oscilando entre o desejo de desaparecer e o de encontrar respostas nas obras de arte que outrora eram sagradas, verdadeiras relíquias. Hoje se mostram ao alcance de todos, escancaradas, e como disse Céline, na citação que abre o filme, qualquer um pode fazer o mesmo, empreender a viagem da ilusão e da imaginação, é só fechar os olhos. Será mesmo assim?

O sentido das produções artísticas contemporâneas é uma questão que se lança à discussão em A Grande Beleza ao longo de seu desenvolvimento, filme do diretor Paolo Sorrentino, e tem forte apelo em algumas cenas específicas. A arte hoje se coloca para artistas e seus apreciadores como uma viagem imaginária ao fim da noite de Céline, uma viagem que vai da vida à morte e é necessário levar às ultimas consequências um carpe diem inesgotável de sensações absolutamente epidérmicas e rasas.

A película gera indagações sobre a qualidade e sentido da arte produzida nos dias atuais, elas não se curvam à valorização de obras de arte do passado, tampouco à música que nega a possibilidade de relação entre prática humana e uso de aparatos tecnológicos.

Os tempos contemporâneos de crise nos impelem a entender que a arte não pode fingir estar à parte, e num pedestal lançar suas luzes ao lamaçal trevoso. Não se trata de sacralizar as obras diante da existência cruel do mundo, pois em sua essência está a negatividade fundante, o germe que permite a elas trafegar no desencantamento, fazendo parte dele, enquanto o criticam. Essa tensão é o que se perde na performance efêmera que polariza o efeito expressivo do ato-obra e ignora o princípio da construção, ou a sua utopia. A dialética oscilante entre os dois princípios, o da construção e da mimese (expressivo) não pode suportar o exagero do ato que se transforma em caricatura da expressão ou a negligência para com o trabalho, com a técnica, com o investimento na forma final.

Muitas cenas evocam essa discussão.  O questionamento sobre o sentido da arte na contemporaneidade, em suas manifestações sonoras e visuais, as atravessa. A preocupação da modificação material deslocada para o corpo explorado, que lamuria, o corpo que sofre a violação, o perigo da morte ou do ferimento, parecem querer renovar a proposta de entretenimento, entrelaçando-o com algo que carrega a aparência de arte opulenta, porém vazia e superficial. É a queda vertiginosa em um abismo que não parece oferecer redenção, embora aparentemente essa redenção esteja de pronto dada pelas performances das próprias obras. Estamos falando de outro tipo de entretenimento? Um entretenimento mais sofisticado que por vezes se faz confundir com arte de qualidade?

A aposta do filme baseada na elaboração de uma crítica ácida encontra seu ponto de inflexão posterior no que seria sua proposta diante da decadência mostrada de diferentes maneiras, a esperança de um saber sensível em cuja essência busca-se a discussão do humano. A grande beleza estaria na feiura da arte sensível, sem a afetação do espetáculo, feita de fragilidades e passível de questionamento, constituída de um saber que transpira investimento, estudo, labuta, erros, mas que transforma perguntas em sentidos, busca incessantemente por respostas, pela tentativa sem trégua, sem necessidade do escândalo, e muitas fezes feita de silêncios e medos.

(trechos do ensaio Em busca de sentidos na produção artística contemporânea: fragmentos sobre o saber sensível no filme A Grande Beleza)